Julgando Julgadores: Uma visão Luterana sobre o Sínodo de Dordrecht (1618-1619)
Di lorio Fernando
Tradução: Christian Ádonis
Introdução
A defenestração de Praga é comumente considerada um dos acontecimentos mais importantes de 1618, o qual deu início à guerra mais devastadora da recente modernidade: a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648). Porém, esse não foi o único evento merecedor de destaque daquele ano: o início das sessões do concílio teológico mais importante dentro do coletivo calvinista constitui um fato não menos relevante.
O Sínodo de Dordrecht (1618-1619) é o corolário de um processo político-teológico iniciado no último quarto do século XVI, em cujas sessões se dirimiu uma situação limítrofe na guerra civil entre o estatuder (stadtholder) das Províncias Unidas, Mauricio de Nassau, e o grande pensionário (raadspensionarios) da província da Holanda, Jan van Oldenvarnebelt. Herdeiros do legado de Guilherme, o Taciturno, o primeiro por ser seu filho e o segundo o seu principal conselheiro, representavam visões políticas distintas: a centralização e o anelo da monarquia constitucional pela parte do estatuder, e a maior autonomia das províncias e a defesa do republicanismo pela parte do grande pensionário. A estas diferenças se unem suas posturas ante a extensa guerra de independência que os holandeses travaram contra a Coroa espanhola. Defendendo que o impacto dos embargos espanhóis complicava a situação financeira da República, o grande pensionário holandês se converteu no principal gestor da Trégua dos Doze anos (1609-1621), enquanto que, por sua parte, Mauricio procurava continuar com a guerra de qualquer maneira.
Ambos os rivais terminaram por defender-se detrás de outros personagens em situação idêntica: Francisco Gomaro, principal defensor da doutrina da predestinação desenvolvida pelo sucessor de Calvino, Teodoro de Beza; e Jacó Armínio, encarregado pela assembleia de Amsterdam de refutar as primeiras teorias críticas àquela teoria, mas que terminou aceitando-as ao ponto de aprofundá-las.
Carl Bangs, um dos biógrafos contemporâneos mais importantes de Armínio, estabelece uma quebra com sua nomeação como professor de teologia em Leiden (1603): a imediata oposição que gerou esta decisão implicou que as forças político-teológicas que de alguma forma tinham coexistido pacificamente desde os começos da reforma religiosa entrassem em conflito (Bangs, 1961: 162). Não obstante, tão cedo como em seus anos de estudante universitário na mesma Leiden (1576-1581), Armínio já tinha começado a evidenciar seus desacordos com a ortodoxia calvinista, em questões como a relação entre igreja e estado (Picirilli, 2002: 4). Por outro lado, embora nunca rejeitou a doutrina da predestinação, provavelmente desde sua ordenação como ministro em Amsterdam (1588) se inclinou a uma versão infralapsaria da mesma (Van Leewen. 2009: XI). Esta postura, que colocava o decreto de Deus sobre a eleição ou reprovação dos homens com posterioridade ao pecado original, se encontrava em franca oposição à tese denominada supralapsaria: segundo Beza, esta implicava que a divindade tinha decretado a eleição ou reprovação inclusive antes da Criação.
Os debates doutrinários que protagonizara Armínio em seus anos de professor (1603-1609) foram analisados recentemente por Keith D. Stanglin (2011). Para este historiador, a reação de Armínio contra o supralapsarianismo, tradicionalmente considerada como o ponto de partida da polêmica, é na verdade a consequência do pensamento relativo à garantia da salvação (Stanglin, 2007: 10).
O certo é que a morte do teólogo em 1609 não somente impediu a realização de um debate entre sua postura e a de Gomaro com o objetivo de solucionar suas diferenças doutrinarias: no ano seguinte seus principais discípulos, entre os que se encontravam Simão Espiscopius e Jan Uytenbogaert, publicaram um protesto (remonstrance) composto por cinco artigos que se distanciavam notoriamente da ortodoxia gomarista. A dita declaração negava que a graça fosse irresistível, baseava a predestinação na presciência de Deus, e afirmava que Cristo tinha morrido por todos os homens e não unicamente pelos eleitos, remarcando de todos os modos que a salvação era concedida aos que criam (Stauffer, 1981: 327-328) Os remonstrantes não rejeitavam a confissão e o catecismo embora considerassem que não eram cânones permanentes e imutáveis da fé, enquanto que também defendiam que as autoridades seculares interviessem nas disputas teológicas para preservar a paz e evitar cismas na Igreja. A resposta a este documento se fez sem demoras, e imediatamente a ortodoxia calvinista publicou um contra-protesto (contra-remosntrance) que rejeitava a postura arminiana e a invertia em sua totalidade. As conferencias de Haia (1610) e Delft (1612), assim como a resolução de 1614 na que os Estados Gerais proibiram a discussão de controvérsias nos púlpitos, não conseguiram deter os enfretamentos teológicos entres ambos os grupos.
Finalmente, sob pressão dos contra-remonstrantes, encabeçados por Gomaro, o estatuder concedeu que se organizasse um sínodo nacional em 1618. Os Cânones de Dordrecht são o resultado das seções do sínodo, que reafirmaram a ortodoxia e desde então formaram um tríduo confessional calvinista junto com as duas Confissões Helvéticas (1536, 1566) e o Consenso de Zurique (1549) (Schilling, 1995: 641). A doutrina arminiana ou remonstrante foi consequentemente condenada como heresia. Os que a defenderam foram expulsos de seus cargos, e seu principal suporte político (van Oldenbarnevelt) foi executado no dia 13 de maio de 1619. Somente depois da morte de Mauricio de Nassau em 1625, Episcopius e Uytenbogaert puderam voltar de seu exilio, sendo por fim beneficiados pela supostamente impoluta atmosfera de tolerância das Províncias Unidas.
O sínodo como chave historiográfica
Devemos retroceder até o último quarto do século XIX para considerar uma das primeiras análises sobre o desenlace da problemática arminiana. Em seu Creeds of Christendom de 1876, Phillip Schaff recorre a uma abordagem predominantemente eventual, no qual destaca tanto um antagonismo como uma semelhança: a contraposição entre a consistente, lógica e conservadora ortodoxia calvinista, frente ao elástico, progressivo e flexivo liberalismo arminiano; e o paralelismo entre a Fórmula da Concórdia e dos Cânones de Dordrecht, por terem ambos consolidado a ortodoxia em detrimento da liberdade, aplicando um estreito confessionalismo e ampliando a brecha entre as duas vertente do protestantismo.
Um segundo marco é constituído pelo já clássico trabalho de Herbert Darling Foster, publicado nas páginas da Harvard Theological Review em 1923. Este trabalho enfatiza a influência política exercida no Sínodo, visível na predeterminação de condenar os remonstrantes, na posterior execução de van Oldenbarnevelt, e no papel assumido por Gomaro no seu afã de propagar sua pessoal animosidade contra os arminianos (Foster, 1923: 2-4). Em matéria teológica, Foster ressalta o lugar secundário da predestinação na teoria do próprio Calvino, mediante o relevo das várias edições da Institutio Religionis Christianae. Foster se inclinava a procurar no processo político prévio e não tanto nas diferenças doutrinarias entre ambos os lados as razões que levaram à expulsão dos arminianos tanto da Igreja como do país.
A publicação de uma coletânea rememorando os trezentos e cinquenta anos do começo das sessões em Dordrecht (1968), forma parte do terceiro momento historiográfico. Peter De Jong, editor desse trabalho e dono de uma visão ortodoxa que não se esforça em dissimular, destacava a progressiva predominância que a igreja tece sobre o estado holandês desde os fins do século XVI, exemplificada nas prevenções que os Estados Gerais tiveram com respeito à reunião de um sínodo nacional, e no fato de que retardaram a dita convocatória até 1618. Os arminianos, que eram vistos até então como defensores de um maior controle estatal da Igreja, com a morte de Armínio comprovaram sua posição minoritária no universo eclesiástico holandês, o qual segundo este autor provocou que começassem a temer a reunião de um sínodo nacional mais que qualquer outro perigo (De Jong, 2008: 35).
Três anos mais tarde é editado uma compilação sobre assembleias e concílios em geral, contendo um pequeno texto sobre as impressões de um dos enviados ingleses ao sínodo, John Hales (Peters, 1971: 277-288). Ali é perceptível a mudança de otimismo ao desencanto da parte do clérigo inglês: a decisão de impedir aos arminianos de aparecer como um partido, assim como sua posterior expulsão a princípios de 1619, implicaram na aproximação de Hales às posturas mais moderadas e a sua desaprovação para com as mais ortodoxas. Duas ressalvas devem ser feitas aqui. Em primeiro lugar, a clara distância com o trabalho precedente: a explícita defesa que De Jong oferece sobre o processo contrasta com a figura de um personagem que formulou importantes críticas a certas decisões do conclave. Em segundo lugar, a análise de Robert Peters deu começo a um crescente interesse dos historiadores pela questão arminiana na Inglaterra, cujo ponto mais crítico é constituído pelo debate que teve seu lugar nas páginas de Past and Present entre 1983 e 1987.
A seguinte abordagem forma parte de uma recopilação aparecida em 2005 sobre religiosidade e intercâmbio cultural na Europa do século XVI. Jan Rohls afirma nesse trabalho que os contra-remonstrantes não somente objetaram os desvios arminianos sobre a doutrina da predestinação, como também acusavam os seus adversários de adotar visões socinianas com respeito a questões tais como a satisfação, a justificação e o pecado original. Igualmente, a originalidade dessa síntese radica em considerar certas questões do processo praticamente obliteradas pelos especialistas precedentes: a impossibilidade de que os remonstrantes enviassem seus próprios representantes ao Sínodo, a prerrogativa das autoridades seculares de verificar as demandas teológicas sem examiná-las, e a proibição de que os arminianos abandonassem Dordrecht sem permissão ainda tendo sido expulsos do sínodo. Por outra parte, a tolerância religiosa das Províncias Unidas é vista por esse autor como uma consequência da falha tentativa contra-remonstrante por consolidar uma única confissão, dando lugar a um pluralismo que os incluiu junto a arminianos, católicos, menonitas e socinianos (Rohls, 2005: 47).
Duas publicações apareceram em 2011 no panorama historiográfico. A primeira delas é um artigo que indaga sobre as influencias teológico-filosóficas dos ortodoxos calvinistas entre 1550 e 1700, para o autor, estes representam uma corrente a qual se denomina “escolasticismo reformado” (Van der Walt, 2011: 510). Naquele período, determinado por uma mistura entre a escolástica medieval, a reforma do século XVI e o recente racionalismo cientifico, os calvinistas e os arminianos de Dort eram vistos como pensadores sintéticos: tentaram acomodar a filosofia aristotélica e platônica além do recente racionalismo às Escrituras, frequentemente consideradas como um livro de teologia.
Finalmente devemos mencionar a mais recente e ambiciosa coleção de estudos sobre o processo da assembleia: fruto de uma conferência internacional organizada em 2006, Revisting the Synod of Dordt (1618 – 1619), reúne investigações de matriz filosófica, antropológica, linguística, e inclusive iconográfica. De todos os modos, seus editores consideram que a série de artigos deve ser vista somente como uma preparação acadêmica para a comemoração dos quatrocentos anos do evento (Goudriaan e Lieburg, 2011: XI-XII).
Agora, salvo uma brevíssima menção em uma obra de outra índole temática (Schmidt, 1954: 79), nenhum especialista tem considerado até o momento a única perspectiva luterana contemporânea sobre os acontecimentos de 1618-1619: me refiro à Diaskepsis Theologica do alemão Nicolaus Hunnius (1585-1643) editada em 1626. Trataremos agora de identificar as contribuições que esta visão luterana sobre o ocorrido no sínodo de Dordt é capaz fornecer.
Um livro dentro de outro: a extensa dedicatória da Diaskepsis Theologica e sua visão sobre o Sínodo de Dordrecht
Pelo menos duas características gerais devemos dizer sobre a “dedicatória”. Primeiro, consta de sessenta e sete parágrafos, que na sua última edição comportam sessenta e oito páginas[1]; e segundo, subjaz uma divisão temática não explicitada pelo autor: os primeiros trinta parágrafos dão conta dos contrapontos ordinários entre luteranos e calvinistas, enquanto que os restantes trinta e sente abordam de forma reticular as atas de Dordrecht.
Tendo analisado anteriormente os primeiros parágrafos (Di Lodrio, 2012), comecemos notando o plano analítico que Hunnius propõe sobre o sínodo no trigésimo primeiro parágrafo, um dos mais sucintos da “Dedicatória”:
Vou reduzir o assunto inteiro a cinco pontos principais, já que pretendo mostrar que o sínodo não é nem livre nem legítimo por razões, em primeiro ligar, das pessoas; em segundo lugar, das circunstancias; em terceiro lugar, do processo; em quarto lugar, do seu limite; quinto, das suas consequências.[2]
Quanto à problemática das pessoas, sua abordagem se encontra dividida em relação à essência e a qualidade das mesmas. Em ambas ocasiões, o teólogo contrapõe o ideal do Irenicum de David Pareus (1614-1615) com o expressado nas próprias atas do Sínodo. Com respeito à essência, ele aponta duas questões que idealmente deveriam ter sido requeridas pelo Sínodo: primeiro, o concernente aos participantes. Em relação a esse assunto, os calvinistas indicaram [em Irenicum] que era necessário que ambos os partidos fossem admitidos no concilio; que o assunto era comum a todas as igrejas e a ambos os partidos, e que portanto todos foram considerados da mesma maneira; que as apreciações de um partido não podiam ser mais fortes do que as do outro; que um sínodo no qual estivesse presente um só partido não podia ser mais livre que os sínodos papais; e que ambos os partidos podiam se expressar não somente mediante o assessoramento e a deliberação, como também pelo poder de aprovar sentenças e fixar limites.
A esta bateria de indicações, Hunnius contrapõe o ocorrido em Dordrecht: o sínodo decretou que somente aqueles que confessassem a religião reformada seriam convidados e admitidos como assessores e juízes; que os arminianos tiveram que assistir a um conclave no qual não foram tolerados como assessores; e que o mesmo sínodo negou ser o partido opositor. Este último leva ao teólogo a se perguntar:
Que outros adversários, especialmente públicos, imaginaram os remonstrantes, senão aqueles que estavam ocupando os principais lugares no sínodo? Por que os partidos do sínodo costumam se referir aos arminianos como “adversários”, se não constituem eles mesmos a outra parte dos litigantes?[3]
O segundo requisito referido à essência das pessoas concerne aos que administraram o processo. A Neistadiensium Admonitio de Zacharias Ursinus (1581) e o Irenicum de Pareus expressavam a necessidade de que cada partido utilizasse defensores especiais e os enviasse ao sínodo para defender sua causa, mesmo quando o que fora expresso publicamente tivesse sido exposto previamente a seus partidários para correções prévias. Empiricamente, nada disso aconteceu. Em primeiro lugar, porque os remonstrantes não puderam enviar à assembleia quem eles acreditavam mais adequados para a deliberação. Segundo, os arminianos conseguiram que os defensores da sua causa fossem admitidos, mas sob condições injustas: lhes foi permitido que ajudassem aos intimados pela assembleia em forma privada mas não em público, lhe foi exigido que se submetessem ao juízo do Sínodo com relação a aqueles com quem tinham que discutir e defender o seu caso, e lhes foi negado que constituíssem um corpo único. A última condição foi estabelecida com a finalidade de impedir que os acusados elegessem seus próprios advogados e defensores, decretando que a sua causa se discutiria separadamente, o que os obrigava a recorrer a defensores de maneira individual.
Quanto à qualidade dos participantes do processo, idealmente se pretendia que estivessem protegidos contra o ódio e prejuízos. Mas o marburguês assegura que um exame de consciência dos presentes na assembleia demostraria que nenhum deles desejaria ser tratado da mesma maneira na qual foram tratados os arminianos. Neste sentido, seu veredito é concreto:
Sem dúvida, é tão claro como o sol ao meio-dia, a partir dos cânones e da ata, que todas as coisas foram feitas com juízos prévios não menos em Dordrecht que em Trento. Assim, o Sínodo que os Reformados celebraram em Dordrecht de nenhuma maneira foi, de fato, o que se conhece por, livre e legitimo.[4]
As circunstancias de tempo e lugar, segundo a base analítica, de forma intrigante mantém uma ordem expositiva descontinua, já que as questões referidas à temporalidade se encontram inseridas dentro da problemática a seguir. Sobre as condições da locação, Hunnius considera que ao se encontrar em um lugar perigoso, sem usufruir de direitos, e obrigados a responder como se estivessem acorrentados, não possuem um cenário apropriado para se defenderem de maneira adequadada.[5]
De imediato formula uma série de perguntas capciosas com as suas respostas correspondentes:
Quem duvida que Dordrecht estava em poder daqueles que eram inimigos da doutrina dos remonstrantes? O sínodo ali reunido negou o salvo-conduto aos remonstrantes que pediam um sínodo, e disse que não podia oferecer isso. (…) Mas, quem duvida de que os que foram intimados [remonstrantes] permaneceram em poder do sínodo ou do partido adversário, para que suas idas e vindas não fossem de nenhuma maneira livres? A própria situação demonstra isso: e com a mesma frequência que inibiu as pessoas citadas de sair de Dordrecht e considerou a inibição da partida dos delegados como legítima.[6]
As condições de tempo relevadas pelo luterano são basicamente cinco. Primeiro, foi estabelecido um período de quatorze dias para chegar à cidade na qual tinham que reunir-se, o que para o marburguês implicava uma limitação em matéria de meditação, de preparação dos assuntos a expor no conclave, e inclusive do tempo mesmo que requeria a viagem. Por outro lado, foi exortado às pessoas convocadas a que comparecessem em forma extemporânea, já que ao chegar a Dordrecht não lhes foi preparado alojamento nem puderam ter acesso a material bibliográfico. Quando foi solicitado ao presidente um adiamento do início das sessões de um ou dois dias, receberam como única resposta a ordem de apresentar-se de imediato.[7] A tamanho abuso, devia somar-se a concessão de um tempo mais breve ainda aos arminianos para que explicassem sua forma de pensar. Em quarto lugar, foi dado aos arminianos somente quatro dias para revelar seus pensamentos sobre os livros públicos das igrejas. E por último, foram apressados para que respondessem o mais rápido possível em suas deliberações.
Quanto à ordem de discussão, o calvinista Pareus considerava que os participantes deviam se reunir entre eles para tratar cada uma das controvérsias e compreender intelectualmente cada problema sem ambiguidade, com um partido afirmando e o outro negando; que as opiniões e razoes de ambos lados deviam ser escutadas, consideradas, examinadas e cuidadosamente comparadas com as Sagradas Escrituras; que, em um segundo encontro, cada partido devia responder os argumentos do outro; que, em um terceiro, cada grupo tinha que defender suas provas dos ataques dos outros. Deste modo, nenhuma facção poderia se queixar de ter tido uma audiência menor, porque ambas teriam defendido seus próprios argumentos e rebatido os opostos a mesma quantidade de vezes; nenhuma disputa poderia surgir sobre a resposta final porque ambos teriam uma.
Diante disso, o luterano Hunnius salienta que não foram apresentadas no Sínodo as confissões de ambos partidos de forma a estabelecer um diálogo mútuo. Em primeiro lugar, os gomaristas nunca apresentaram uma confissão de sua fé um público. Segundo, nunca permitiram aos arminianos expressar sua opinião sobre o ensinamento do grupo contrário. Por outro lado, os prefeitos que governavam o Sínodo favoreceram indefectivelmente ao mesmo partido, sendo o máximo exemplo o de Boogerman, presidente do concilio e o mais feroz inimigo dos remonstrantes (el Irenicum de Pareus previa que o conclave também tivesse outro presidente, extraído do partido contrário). Em quarto lugar, os mesmos porta-vozes designados que auxiliavam ao presidente (Jacob Roland e Herman Fauckelius) pertenciam à mesma facção, e por isso atuaram de forma tal que impediram aos acusados eleger seus próprios oradores. Quinto, as regras não foram escritas de comum acordo. Em sexto lugar, ao não selecionarem os representantes de ambos partidos, não puderam manter reuniões privadas com o fim de chegar a um acordo sobre as controvérsias. Sétimo, o Sínodo não comparou as crenças de ambos partidos nem permitiu aos arminianos fazer isso; nunca foram explicadas as falhas da doutrina remonstrante, e muito menos eles tiveram uma audiência para defender sua causa e expor seus argumentos. Por último, permitiram que os acusados fossem oprimidos pelo braço secular, devido a que o Sínodo distorceu quase tudo o que disseram ou discutiram os que ali foram convocados, com a finalidade de torna-los impopulares frente à sociedade e fazê-los ver como precursores da rebelião contra as autoridades seculares.
No penúltimo dos pontos analíticos (os limites), a crítica a Pareus e Ursinus se baseia em que nenhum deles prescreveu normas especiais no caso de que os limites de ação do sínodo terminassem precipitadamente em prejuízo do partido acusado, ou no caso de que a assembleia não alcançasse conclusão alguma com respeito aos assuntos em discussão.
Neste caso, três são os limites que nosso teólogo luterano observa em Dordrecht. Primeiro, o impedimento de atividades reciprocas, evidenciado na impossibilidade dos arminianos de fazer um seguimento de suas próprias respostas ou defesas. Por outra parte, o partido gomarista não se atreveu a dar à luz sua própria causa, assim como suas condições e consideração para a discussão pública. Por último, contra a promessa que tinha feito, a facção contra-remonstrante interrompeu a ação dos arminianos inclusive antes de começar, quanto não tinham explicado, defendido e seguido seu caso na medida em que estes últimos consideravam necessário.
Quanto às consequências do Sínodo, estas são abordadas a partir da consciência dos envolvidos no processo. Hunnius recorre mais uma vez aos teólogos de Heidelberg, observando que Pareus temia que uma conferência organizada da forma que ele havia sugerido pudesse terminar com um resultado contrário aos gomaristas. Portanto, tomou o cuidado para que, por meio da declaração final, os erros originais dos arminianos não fossem permitidos, nem se continuasse neles.
Se a priori já se menciona o papel da consciência quanto à qualidade das pessoas que compareceram a Dordrecht, nesse caso, nosso teólogo vai ainda mais longe e sugere que se o pensamento de todos os assessores do processo fosse analisado, o exercício demostraria de modo contundente que nenhum deles tentou persuadir aos arminianos, uma vez que, desde o início, tal intenção sequer foi demonstrada. Contrariamente a isso, o marburguês evidencia que “o sínodo atou as consciências das pessoas convocadas (que até o momento ainda não haviam sido ouvidas nem condenadas) de tal forma que, no caso de não aceitarem os decretos do Sínodo, deviam ser banidas da igreja e do território.”[8]
O último e mais extenso parágrafo recapitula os dois principais desacordos com os calvinistas: a legitimidade e liberdade do Sínodo, e o acordo no fundamento da fé. Desse último, Hunnius assinala seu anelo de informar com seu trabalho aos mais inocentes, e de que os calvinistas não se persuadam nem tratem de persuadir aos demais de que estavam de acordo com os luteranos quanto a esse ponto. Ficou claro que as implicacões de um sínodo livre, isto é, de uma resolução amistosa e sem prejuízo de consciência para qualquer partido ou pessoa, foi exatamente o oposto do ocorrido em Dordrecht.
Por outro lado, nosso teólogo expressa sua preocupação pela situação ocorrida na Prússia[9], interpretada na mesma chave comparativa com a que abre a “Dedicatória”: denuncia que as astutas atividades dos calvinistas levadas adiante ali resultaram que
ao lobo seja permitido entrar com impunidade no redil das ovelhas vestido com pele de cordeiro, claramente com o pretexto e o plano de um consenso no fundamento da fé, que de fato tem enganado a muita gente, colocado a muitos em dúvida, e perturbado ainda a mais.[10]
De todos os modos, o luterano Hunnius se mostra otimista sobre o futuro e confia nos efeitos que pudera gerar seu tratado, assim como na união espiritual com três colegas da Universidade de Königsberg a quem dedica a obra: Johann Behm (1578-1648), Levinus Pouchenius (1594-1648), e Celestinus Myslenta (1599-1653), este último considerado como um dos mais exitosos rivais da política tolerante prussiana posterior à conversão do Eleitor Juan Segismundo (1572-1619) em 1606 (Reventlow, 2010: 223-224).
Conclusões
As reiteradas alusões à Admonitio Neostadiensium de Ursinus e ao Irenicum de Pareus, de um lado, evidenciam a expansão das ideias do irenismo e do unionismo eclesiástico no Sacro Império durante a Guerra dos Trinta Anos. (Schmeling, 2007: 316). Por outro lado, têm um duplo propósito. O primeiro, tentar evidenciar a incoerência ocorrida em Dordrecht, à medida que os próprios gomaristas não agiram de acordo com os escritos de Heidelberg. O restante pode ser raciocinado do seguinte modo: se aquelas obras contribuíram teologicamente para ganhar o Palatinado eleitoral e o ducado da Prússia a favor da causa calvinista, a obra do luterano procurava cauterizar tamanhas perdas e conservava a esperança de recuperar pelo menos os fiéis prussianos.
Nestas críticas subjaz uma contraposição tácita ao processo de debates doutrinários concluídos com a Fórmula e o Livro da Concordia, explicitada uma única vez por ocasião de sua análise sobre os indivíduos que compareceram a Dordrecht[11]. Não obstante, somente mediante a inversão das múltiplas deficiências que o teólogo assinala com respeito ao processo holandês poderemos reconstruir seu próprio ideal sinodal, que não é outro a não ser aquele que tinha conseguido saldar as diferenças no interior do coletivo luterano: o Sínodo de Torgau de 1547.[12]
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Bibliografias
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[1] Para a análise do texto utilizo a edição em inglês do original em latim: Hunnius, Nicolaus (2001), Diaskepsis Theologica: A Theological Examination of the Fundamental Difference between Evangelicas Lutheran Doctrine and Calvinist of Reformed Teaching, Malone, Repristination Press, pp. Xiii-lxxxi
[2] Hunnius, Nicolaus (2011), Diaskepsis Theologica, “Dedication”, parágrafo 31: “I shall reduce the entire subject to five chief points, as I intend to show that the synod was neither free nor legitimate by reason, first, of persons; second, of circumstances; third, of process; fourth, of its limits; fifth, of its consequences” (p. xxxvii). A não ser que se indique o contrário, todas as traduções ao castelhano da fonte em inglês são minhas.
[3] Ibid., parágrafo 37: “What adversaries, especially public ones, did the Remonstrants ever imagine except those who were holding the chief places in the synod? Why did the parties of the synod so often call the Arminians ‘adversaries’, if they themselves did not constitute the othe party of the litigants?” (p. xlvi).
[4] Ibid., parágrafo 44: “It certainlu is as clear as sunrise at noon form the decrees and acta that all things were done with prejudices no less at Dordrecht than at Trent. Thus the Synod which the Reformed celebrated at Dordrecht was by no means and, in fact, as far as the persons are concerned, in no way free and legitimate” (p. liv).
[5] Ibid, parágrafo 46: “If a person is situated in a dangerous place or does not enjoy his own rightis but is in the power of his foe and is forced to give answer as if he were in chains, he cannot defend his own property with due presence of min dor confidence” (p. liv).
[6] Ibid., parágrafo 46: “Who doubts that Dordrecht was in the power Who doubts that Dordrecht was in the power of those who were foes in doctrine to the Remonstrants? The synod gathered there denied safe conduct to the Remonstrants who were asking for a synod and said that it could not provide that. (…) But who would doubt that those who were summoned were in the power of the synod or of their opposing party so that their coming and going were by no means free to them? The situation itself says this; and as often as the synod has it inhibited the people cited from leaving the city of Dordrecht and considered inhibiting the departure of the delegates as legitimate” (p. lv).
[7] Ibid., parágrafo 60: “When they had come to Dordrecht, because no lodgings had yet been prepared and no library materials set aside for them, they asked the chairman that the preparation of such things be put off for at least a day or two, sess.22, p.55. They did not get their request but were ordered to be present forthwith” (p. lxvi).
[8] Ibid., parágrafo 67: “the synod so bound the consciences of the cited people (who had not yet been heard nor convicted) that, when they did not acquiesce to the decrees of the synod, they were outlawed from the Church and territory, sess. 46, p. 139” (p. lxxv).
[9] Veja Nischan, Bodo (1983), “The Second Reformation in Brandenburg: Aims and Goals”, The Sixteenth Century Journal, 14:2, pp. 173-187; Nischan, Bodo (1994), Prince, People and Confession: The Second Reformation in Brandenburg, Pennsylvania, University of Pennsylvania Press
[10] Hunnius, Nicolaus (2001), Diaskepsis Theologica, “Dedication”, parágrafo 67: “It has done this to this end: that the wolf may be permitted to enter the sheepfold with impunity under sheep’s clothing, clearly under the pretext and with the plan of a consensus in the foundation of faith, something which has indeed deceived some people, placed many in doubt and rendered still more disturbed” (p. lxxviii).
[11] Ibid., parágrafo 36: “On the other hand, however, lest I say anything about this limitation (which never appears in the Neustadt Admonition nor in the Irenicum of Pareus), the Reformed have been complaining about the synod of the Lutherans which they nevertheless instituted that both parties were established under one magistrate, as they themselves confess about the Synod of Torgau, which was held in the Electorate of Saxony in 1574 (sess. 29, p.109)” (p. xliv). 12
[12] Este sínodo foi celebrado em setembro daquele mesmo ano por ordem do príncipe eleitor Augusto de Saxônia (1553-1586), quem após expulsar de seus cargos e inclusive aprisionar a vários teólogos acusados de cripto-calvinismo, mandou a um grupo de intelectuais, encabeçados por Jacob Andreae (1528-1590), para que reconstruíssem a Igreja luterana (Kolb, 1999: 108). Em maio de 1576, os teólogos se reuniram novamente em Torgau para esboçar um livro que foi enviado a todas as igrejas luteranas do Império para sua consideração. Em maio de 1577, na abadia de Bergen perto de Magdeburgo, foram feitos trabalhos sobre as críticas ao projeto de Torgau e finalmente se achegou à declaração da Formula da Concordia (Dingel, 2008: 62).
fonte do artigo: Disponível em: <http://cdsa.aacademica.org/000-010/115.pdf>. Acesso em: <30/06/2017>
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